“A engenharia de um pé melhor”

“A engenharia de um pé melhor”

Como a invenção do tênis de corrida, e a busca por corredores cada vez mais velozes nas olimpíadas pode estar ligada com as lesões que você tem sofrido no dia-a-dia.

Na década de 1870, o esporte favorito do povo estadunidense era o chamado Pedestrianismo, que é exatamente o que parece: Uma competição de caminhada, onde o desafio era cobrir uma distância de 500 milhas (~805 Km) em um espaço de 6 dias ou menos. Era um esporte altamente popular, com direito a crimes envolvendo apostas esportivas e escândalos de doping envolvendo cocaína.

Este esporte é o predecessor não apenas dos esportes de corrida (atletismo de pista com ou sem obstáculos e maratonas) — Mas da Marcha Atlética, uma modalidade de “corrida” onde ‘um pé sempre tem que estar no chão’, em efeito obrigando pessoas a andar rápido sem jamais correr.

Em Pedestrianismo correr era permitido, mas era uma estratégia ruim, você precisava conservar sua energia. Não era uma corrida de 100 metros. Sequer era uma maratona. Eram 500 milhas.

Depois de meia dúzia de escândalos, o povo estadunidense perdeu interesse em Pedestrianismo, em favor de outros esportes como Futebol Americano e Baseball. Quando o século 19 acabou, este esporte havia sumido da consciência pública.

Eis que no século 20, ‘correr’ era algo para atletas profissionais e crianças, os únicos adultos que corriam eram atletas profissionais. Era tão raro que era considerado inerentemente suspeito: Se um adulto fosse visto correndo, provavelmente seria questionado pela polícia, e podia até ser multado por “uso impróprio de uma via pública por um pedestre”. A opinião pública sobre correr mudou a partir da metade da década de 60, e tudo começou com um livro: Jogging, em 1967, escrito por Bill Bowerman. Bowerman era treinador de uma equipe profissional de atletismo no estado do Oregon, tendo inclusive treinado a seleção americana de atletismo em eventos internacionais. 

Em 62, Bowerman foi à Nova Zelândia e conheceu Arthur Lydiard. Lydiard era organizador de algo, na época, inusitado: Um clube de corridas não-profissional. Ele convidou o time que Bowerman estava treinando para correrem juntos, uma corrida lenta, casual, que exercitava o corpo ao invés de forçar seus limites em um tiro de máxima velocidade.

Bowerman gostou tanto da ideia que ele decidiu levá-la para os EUA.

Em seu livro, Bowerman discute rotinas de treino para níveis diferentes de preparo, mas nas primeiras 50 páginas, ele apresenta um argumento pelo qual este exercício devia ser praticado, argumentando que exercitar-se regularmente seria bom para a saúde, o que acredite ou não, era uma ideia nova na época.

Bowerman e Lydiard chamavam este exercício de ‘Jogging’. Um termo sem tradução direta para o Português, usualmente é traduzido como ‘corrida’, mas a expressão ‘jogging’ havia sido escolhida exatamente para diferenciar este exercício da corrida como esporte praticado por atletas (‘running’).  Na lógica dos dois treinadores profissionais, este treino era para o bem do corpo, e não para vencer competições. Se você não era um profissional, com um regime montado por um treinador e uma dieta restritiva, se você era uma pessoa comum se exercitando pelo próprio bem, então, no argumento dos dois, você não era um runner, você era um jogger

Joggers vem em vários tamanhos e formas, em uma gama diversa de idades e níveis diferentes de preparo. Quando eles saem para seu jogging a técnica pode variar muito, mas lembre-se: Como você pratica o jogging nunca será tão importante quanto o fato de você praticá-lo”

Dizia ele em seu livro.

Este programa de fitness se popularizou rapidamente: Outros programas de treino podiam ter custos adicionais significativos antes de você poder começar a treinar, mas para o jogging, tudo o que você precisava era você mesmo. No livro, Bowerman dizia

“homens podem começar imediatamente, os calçados que eles usam para trabalhar devem servir, mas mulheres que só têm sapatos de salto vão precisar comprar sapatos rasos”

E é aqui que entramos no cerne desta discussão: Sapatos. Bowerman não era só um treinador de equipe profissional, ele também era sócio de uma empresa chamada Blue Ribbon Sports, que havia recentemente começado a distribuir os tênis Onitsuka Tiger nos EUA (hoje vendidos pela Asics)… E também era um pouco de um inventor: Ele havia modificado os calçados de seus atletas com formas e materiais diferentes para dar a eles uma vantagem competitiva, ele havia feito isso pessoalmente por décadas, mas agora ele tinha acesso a uma fábrica capaz de produzir estas modificações em massa.

Mas que história é essa de inventar um “pé melhor”? 

Bem, quando Bowerman estava escrevendo seu livro, em 67, a técnica de corrida usada por profissionais, e a técnica recomendada no livro, era conhecida como ‘ball striking’, onde cada passada da corrida começava batendo a ponta do pé no chão primeiro. Esta é a forma ‘instintiva’ de correr para a maioria das pessoas. Mas aí, nas olimpíadas de 68, algo aconteceu envolvendo outro esporte de atletismo. Não a corrida, mas o salto em altura:

Até 68 a técnica usada pelos atletas era a chamada ‘tesoura’, que envolvia ‘chutar’ as pernas por cima da barra uma de cada vez. Mas então o atleta Dick Fosbury inventou um jeito novo de realizar o salto, se jogando de costas para cima e contraindo as pernas na altura do salto, não apenas vencendo a medalha de ouro, mas quebrando o recorde olímpico. 

Isso levou Bowerman a pensar se ele não podia, também, quebrar recordes no atletismo de corrida inventando uma técnica nova. E esta técnica era chamada ‘heel striking’, onde o pé devia aterrissar no chão com o salto primeiro, tal como é feito quando andamos. 

Mas isso trazia um problema: Quando corremos, nosso pé absorve até 3x nosso peso no momento do impacto. Tentar aterrissar nos saltos do pé com este impacto em sapatos comuns podia causar sérias lesões. Por sorte, Bowerman, o inventor, havia criado uma solução:  Um sapato com um grande amortecedor na região do salto, um solado muito mais grosso que qualquer sapato atlético da época. Este calçado, Bowerman nomeou de ‘Cortez’.

A partir da década de 70, a Blue Ribbon Sports deixou de distribuir calçados japoneses para focar em sua própria linha, e mudou de nome, usando o nome da deusa grega da vitória: Nike

E a Nike conquistou o coração das pessoas com marketing envolvendo uma celebridade, o atleta Steve Prefontaine, que havia ganhado o ouro nas olimpíadas de 72. 

… Prefontaine estava usando Adidas nas Olimpíadas, não Nike, mas pouco importa: O patrocínio de celebridade havia funcionado. Bowerman nunca realizou estudos de rigor científico sobre se o sapato que ele havia inventado realmente melhorava a velocidade dos corredores: Ele não precisava. 

Prefontaine esmagando todos os recordes olímpicos e virando um rockstar dos esportes era toda a evidência que as pessoas precisavam. Ele era o Usain Bolt de sua geração, e agora, corrida era legal e milhões de pessoas estavam aderindo ao esporte por todo o mundo.

Mas a popularização da corrida como esporte e do jogging como exercício coincidiu com uma tendência no mínimo preocupante:

Pessoas, e não só pessoas normais, mas atletas profissionais também, começaram a ter problemas maiores com lesões. Fascite plantar, tendinite, bursite. Os melhores atletas do mundo agora estavam “envelhecendo” mais rápido.

Mas não era coincidência.

Considere a imagem acima. Este é seu pé, no chão. 

Quando você veste um tênis de corrida (e essa inovação obviamente não ficou só na Nike), o seu pé fica erguido:


Por que isso é um problema? Porque isso põe pressão em músculos que normalmente não são forçados durante o ato de correr. O pé humano é, fundamentalmente, feito para correr, ou melhor, feito para trotar: Era nossa arma secreta na natureza, antes da linguagem, antes da organização de sociedades. O hominídeo ancestral era um predador de persistência, ele não tentava alcançar um bicho correndo disparado, ele só trotava casualmente atrás do animal, por horas e horas, até o animal estar exausto demais para continuar dando disparos de velocidade. Então estas adições artificiais estavam interferindo com algo que já funcionava muito bem.

Lógico que os engenheiros de sapatos de corrida perceberam a correlação entre lesões e os novos sapatos, mas ao invés de retornar aos básicos, eles foram adicionando: Suportes para a curva do pé, bolsões de ar, injeções de gel.


O solado também sofreu uma mutação. O solado do Nike Cortez original tinha um padrão simples em sua borracha:


Mas mais adiante, sapatos de corrida adotaram padrões complexos, quadriculados:


Isso não é só estética: Este design melhora a tração do calçado – Especificamente nas pistas de concreto pintado com polímeros plásticos onde atletas olímpicos correm. 

A medida usada por designers de tênis era sempre o tempo de corridas em eventos de atletismo profissional. Consequentemente, o calçado sempre era, e até hoje é, projetado com estes atletas em mente… E sempre pensando em quebrar recordes agora, nunca considerando as consequências a longo prazo.

Levaram cinquenta anos para pesquisadores começarem a estudar isso – E há alguma evidência de que pessoas começam a mudar sua técnica de corrida com base no calçado que estão usando: Quanto mais grosso o solado, maior a chance deles praticarem o heel strike. Enquanto pessoas em calçados mais simples ou descalças tendem a usar as pontas dos pés.

Calçados de corrida, e a técnica de corrida de heel striking que eles incentivam, podem resultar em velocidades maiores… Mas há uma consequência. Nosso instinto de aterrisar na ponta do pé está lá por uma razão: Ele faz sentido. 

Quando você aterrissa na ponta dos pés, seu pé lentamente se alavanca em direção ao chão, distribuindo as forças ao longo de todo o comprimento do pé. Quando você aterrisa nas solas do calcanhar, toda a força atinge seu calcanhar de uma vez e é transmitida perna acima imediatamente. A vantagem, claro, é que você imediatamente usa o resto do pé como alavanca para se lançar para a frente, portanto correndo mais rápido.

O amortecimento do calçado reduz o impacto, mas no fim das contas não muda a forma como as forças agem sobre a musculatura, juntas, e ossada, forçando partes do corpo ao longo de toda a perna, subindo até a pelve. A longo prazo isso é ligado a lesões de esforço repetido por toda a perna.

Não que pessoas que correm com a ponta dos pés estejam isentas de se lesionarem, mas as lesões envolvidas tendem a ser mais superficiais, e portanto de tratamento mais simples: Bolhas nos pés, calos, cortes. Em casos extremos, tendinite na região do pé pode se desenvolver.

Não é coincidência que da década de 2010 para cá – Corredores têm começado a adotar um tipo diferente de calçado. Conhecidos como calçados minimalistas: 


Projetados não como “gessos amortecidos” mas como “Luvas para os pés”, estes calçados são pensados para proteger o pé quando corremos da forma que é “natural”. O resultado é uma passada mais segura, com menos lesões – mas também mais lenta.

Ao mesmo tempo que estas ‘luvas pedais’ foram inventadas, também foram inventados calçados com solados ainda mais grossos e elaborados, é o caso do Nike Vaporfly, com um solado de quase 4cm de espessura:


Em testes, um atleta vestindo um par de Vaporflies conseguiu correr uma maratona em menos de 2 horas. Um tempo anteriormente considerado impossível. Essa é a promessa destes calçados “Maximalistas”. 

Mas talvez para aqueles entre nós que não estamos tentando quebrar recordes no limite da capacidade humana, esteja na hora de repensar o que calçamos.

Fonte de informações & imagens: Knowing Better, no Youtube

Imagem de capa: Pixabay

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